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quarta-feira, 22 de abril de 2009

A primeira macrometrópole do hemisfério sul

A mancha urbana cresceu a ponto de emendar São Paulo a Campinas, uniu 65 municípios e hoje abriga 12% da população brasileira.



Em 1722, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, que herdou o nome do pai, o lendário Anhangüera, deixou a cidade de São Paulo com uma tropa de 152 homens armados, 2 religiosos e 39 cavalos.Por cinco dias, embrenhou-se na mata fechada até achar um lugarejo que virou ponto estratégico para tropeiros ávidos em chegar ao sertão das minas de ouro de Goiás e Mato Grosso. Essa parada, 23 anos depois, foi batizada de Campinas. Hoje o antigo "Caminho dos Goiases", a trilha de 102 quilômetros aberta pelo bandeirante, virou uma coisa só: a primeira macrometrópole do Hemisfério Sul, uma mancha urbana de 22 milhões de habitantes.


São 300 mil veículos que circulam todo dia pelo complexo rodoviário mais movimentado de São Paulo, as Rodovias Anhangüera e Bandeirantes. No entremeio fica o parque industrial mais rico do País, que responde por 65,3% do Produto Interno Bruto estadual ou 22,1% do nacional, uma economia de R$ 475 bilhões. Estudo da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), com base em imagens de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e obtido com exclusividade pelo Estado, indica que entre os dois aglomerados urbanos não há mais que meros 14 km entre bairros com o mínimo de 72 moradias, conceito mundial para definir uma macrometrópole, a junção de duas regiões metropolitanas.

Os 65 municípios localizados às margens ou bem próximos das duas rodovias estão ligados. Em cada grupo de 100 brasileiros, 12 moram nessa mancha. Sua extensão de 11.698 quilômetros quadrados equivale a 0,27% do território brasileiro, mas abriga mais gente do que países como Chile, Bélgica e Holanda. "Hoje não temos uma rodovia, mas uma avenida urbanizada ao longo da Via Anhangüera", afirma o arquiteto Nestor Goulart Reis, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), autor do estudo Urbanização Dispersa e Novas Formas de Tecido Urbano. "O cotidiano das famílias pode se organizar dentro desses 100 quilômetros."


O casal Henrique Sana, de 24 anos, e Fernanda Campos, de 26, trocou a Rua Pedroso Alvarenga, no movimentado Itaim-Bibi, na zona sul paulistana, pelo bairro do Cambuí, em Campinas. Nessa decisão pesaram três fatores. Primeiro, o fato de morar melhor gastando menos - no interior, o valor do metro quadrado construído chega a quase metade do preço do de um bairro paulistano como Moema. Depois, pela proximidade com o trabalho de Fernanda, supervisora comercial no Aeroporto de Viracopos, maior terminal de cargas do País. Mas, acima de tudo, qualidade de vida superior. Henrique, analista de sistemas, manteve o emprego na capital, para onde vai três dias por semana, de ônibus fretado; nos outros dois, dá expediente em Jundiaí, quando tira o automóvel da garagem.


"Estamos o tempo todo na estrada, mas isso não é ruim", diz Henrique. "Chegamos em casa à noite e ainda temos pique de pegar o carro e ir para um barzinho ou a um cinema. Em São Paulo, perdia uma hora e meia no trânsito, chegava esgotado e só queria dormir." Como parte dos clientes de Fernanda é de São Paulo, ela precisa de dois aparelhos celulares, um para cada cidade. Mas o casal já se acostumou a se movimentar de carro, aproveitando o que cada metrópole ou município vizinho tem de melhor. Ir a restaurantes, sorveterias, cinemas, rever os amigos na capital e visitar a família dela, no interior, tudo isso se transformou em prazer.


A formação da macrometrópole só foi possível graças a uma série de progressos da engenharia moderna. No início do século 20 surgiu a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, cujos trens foram responsáveis pelo escoamento do café produzido em isoladas fazendas do interior. Como em todo o Estado, a riqueza cafeeira forjou a urbanização no entorno. No fim da década de 1940, a Via Anhangüera, ainda de terra, se firmava como importante corredor comercial, mas só ligava São Paulo a Jundiaí. Nos anos 1960, veio o inevitável asfaltamento da rodovia, que reduziu em uma hora o percurso. Na década seguinte, indústrias da capital e multinacionais decidiram abrir sedes e galpões ao longo da estrada - um pouco para fugir dos caros aluguéis, outro tanto pelo surgimento de um mercado em franca expansão, a rica região do oeste paulista.


Com mais empregos, aumentou o fluxo migratório da classe média para as cidades menores do interior. Proliferaram os condomínios fechados, erguidos sobre terrenos de baixo custo, ao longo de estradas vicinais. Esse processo foi reduzindo a distância física entre os municípios, e se acentuou ainda mais com a conclusão da Rodovia dos Bandeirantes, em 1978. A estrada expressa, considerada a melhor do País pela Confederação Nacional do Transporte, intensificou o fluxo do trans-porte de cargas e de pessoas, condizente com a nova dimensão econômica de São Paulo e Campinas. A partir da segunda metade dos anos 1980, a pujança virou ímã para uma classe média operária, migrantes nordestinos e desempregados da capital. Terrenos públicos ao longo da rodovia foram invadidos, na periferia das cidades menores. Formaram-se bairros com ruas em chão de terra, alguns que começam em um município e terminam em outro, como as ocupações dos últimos anos na Estrada de Santa Inês, zona norte, área limítrofe com Caieiras e Mairiporã. Em todos, um ponto em comum: ausência do poder público. O Jardim Amanda, em Hortolândia, por exemplo, espera por saneamento básico e asfalto desde a invasão, há 20 anos.


É justamente esse inchaço no miolo da mancha urbana que preocupa, agora, urbanistas e governantes. Há uma massa de famílias pobres que não pára de migrar para bairros como o Distrito Anhangüera, na zona norte de São Paulo. A população cresceu 176% entre 1996 e 2007, segundo a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). Um crescimento 14 vezes maior que o da capital, de 12,1%.


A explosão demográfica ganha contornos e rostos como o do ajudante de obras Sebastião Floriano, de 40 anos. Em 1989, ele deixou a praia de Paracuru, no Ceará, para morar no Grajaú, zona sul paulistana, onde pagava R$ 400 de aluguel por um barraco. Até que, em 2001, a convite de um primo, Floriano levou a mulher, Maria, e dois filhos para viverem em Barueri. O município cresceu 60,6% de 96 a 2007, saltando de 170 mil para 273 mil habitantes. Em pouco tempo o pedreiro virou o "feliz" mutuário de um conjunto habitacional, construído no terreno que ele e centenas de outras pessoas invadiram e, posteriormente, foi desapropriado pela prefeitura. "Já chamei mais dois primos, está vindo todo mundo", diz. "Pode ver, a cidade é bem mais sossegada, não tem aquela bandidagem nas ruas à noite." Eles não se importam com os longos deslocamentos que têm de fazer para trabalhar. Maria recorre ao ônibus intermunicipal para ir ao bairro da Pompéia, zona oeste da capital, onde é doméstica. Ele vai com o próprio carro (um Chevette 1977, que guarda na garagem de um amigo) até a estação ferroviária e segue de trem e metrô para uma construtora na Vila Carrão, na zona leste. "Não tenho como ganhar aqui o que ganho em São Paulo. Mas meus filhos estudam em escola boa, da prefeitura, enquanto no Grajaú nunca tinha vaga", conta ele.


Segundo o arquiteto e urbanista Mário Barreiros, da Emplasa, o crescimento da macrometrópole remete às highways, as largas estradas dos Estados Unidos: o condomínio, a universidade um pouco à frente, alguns quilômetros adiante o shopping, ao lado a favela e, entre eles, só a rodovia. "A urbanização dispersa gera novas preocupações, como a distribuição de água, coleta de lixo e transporte público. Num ambiente fragmentado, esses serviços são mais difíceis de serem implementados", explica.


A Emplasa, órgão vinculado ao governo estadual, foi criada em 1975 justamente para apoiar prefeituras e entidades públicas e privadas na busca de soluções integradas na mancha urbana. Mas, na visão do arquiteto Nestor Goulart Reis, da USP, isso jamais ocorreu. "A Emplasa nunca conseguiu construir um envolvimento dos prefeitos para a adoção de medidas conjuntas que pudessem trazer benefícios em comum para as regiões", critica. "Não existe uma gestão homogênea."


Hortolândia se expandiu no embalo do crescimento de Campinas. Tinha 80 mil habitantes no início dos anos 1990, quando incentivou a instalação de um pólo farmacêutico e tecnológico. Empresas como IBM, Belgo Mineira e Dell construíram sedes em áreas estratégicas a 30 quilômetros do Aeroporto de Viracopos e às margens do anel viário formado pelas Rodovias Anhangüera, Bandeirantes, D. Pedro I e o ainda incompleto Rodoanel. Atraídas pela perspectiva de emprego, milhares de famílias de baixa renda de cidades vizinhas, como Sumaré e Nova Odessa, começaram a invadir terrenos de Hortolândia, os mesmos que a prefeitura queria negociar com o mercado industrial. Não absorvidas pelas indústrias, acabaram formando um bolsão de miséria numa das regiões mais ricas do País. Segundo o Censo de 2007, o município tem 191 mil habitantes, que ocupam 62,3 km2.

Com a transferência de presos da antiga Casa de Detenção da capital para o complexo de presídios Campinas-Hortolândia, a partir de 2001, a situação se deteriorou. Hoje, são 7 mil detentos. Famílias de presos passaram a se instalar em invasões sem estrutura alguma. Os dejetos dos presídios escorrem a céu aberto, matando o Ribeirão Jacuba, principal manancial da cidade. "Você não acredita no tamanho das ratazanas que saem desse córrego à noite. Do meu quarto dá para ouvir elas andando na rua de terra", conta o carpinteiro Francisco Antônio de Oliveira, de 78 anos, tido como "zelador" da Vila Conquista. Uma estação de tratamento de esgoto está sendo construída e a prefeitura investe na reurbanização de bairros antes considerados invasões.


Se as obras viárias permitem que a mancha urbana vire uma macrometrópole, as cidades ainda padecem de falta de planejamento e de soluções eficientes para problemas urbanos. São municípios ligados, mas não conectados. "As regiões não possuem modos de vida integrados. Ao contrário, têm muitas especificidades. O morador de Sumaré, na maioria das vezes, não tem nenhum contato com o de São Paulo", pondera o sociólogo Ricardo Ojima, do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas. Nas imagens de satélite, percebe-se que a desconcentração da capital se deu num raio de 150 quilômetros. "A indústria não queria se distanciar da estrutura de suporte logístico oferecida pela metrópole, nem da comodidade para o escoamento das mercadorias pelo Porto de Santos", aponta a pesquisadora do Inpe, Cláudia Maria de Almeida.


Na última década, empresas como Coca-Cola, Pepsi e AGA se instalaram no miolo da mancha urbana, na estrada que liga Jundiaí a Cabreúva, formando um dinâmico corredor empresarial. A multinacional holandesa Akzo Nobel, fabricante de tintas, montou sua fábrica no parque industrial e passou a exigir mão-de-obra local e de fora. O paulistano Adenilson Araújo, de 50 anos, foi um dos contratados. Para ficar perto do trabalho, mudou-se para um condomínio fechado na Serra do Japi, em Jundiaí e uma das últimas reservas de mata atlântica. "Foi uma excelente opção. Hoje, eu, minha esposa e meus dois filhos temos vidas bem mais tranqüilas", anima-se o gerente de Recursos Humanos. A filha Ana Carolina, de 23, conseguiu emprego na IBM de Hortolândia, e usa todos os dias a Rodovia dos Bandeirantes para ir trabalhar.


Na projeção da Emplasa, a macrometrópole deverá ser ainda maior com a conurbação de São Paulo e Campinas com a Baixada Santista, o Vale do Paraíba e a região Piracicaba-Limeira, totalizando 28 milhões de habitantes em 102 municípios. É questão de alguns anos para a mancha urbana pôr os pés na areia. "Pensávamos que Lagos, capital da Nigéria, seria a primeira macrometrópole do Hemisfério Sul, mas o que se observa entre São Paulo e Campinas é a sinergia entre estruturas de serviços e transportes que ainda não existe em países populosos da África", diz Jurandir Fernandes, presidente da Emplasa. À frente da macrometrópole brasileira estão as regiões de Tóquio-Kobe, a chinesa Xangai e Cidade do México.


"Uma macrometrópole que tem quatro aeroportos (Congonhas, Cumbica, Viracopos e Jundiaí) não pode ficar desprovida de ferrovias usadas por trabalhadores", adverte Fernandes. Hoje, os trens chegam até Jundiaí e o expresso para ligar Campinas à capital deve virar realidade só depois de 2012. A tendência de São Paulo se ligar ao Rio também é acentuada, mas não se verifica a existência de uma macrometrópole entre elas - ainda. Nos quase 600 quilômetros que as separam, há espaços de até 23 quilômetros sem interligação - como entre Queluz (SP) e Resende (RJ).

As características da macrometrópole foram concebidas no começo do século 20 pelo escocês Patrick Geddes para definir o ajuntamento urbano que cobria parte do noroeste dos Estados Unidos. Esses ajuntamentos tinham para Geddes, considerado o pai do planejamento urbano, um caráter "apocalíptico". No polêmico estudo Bos-Wash, referindo-se à conurbação entre Boston e Washington, ele afirmava que as metrópoles estavam fadadas à destruição, tornando-se "necrópoles", cidades mortas. Hoje, o que se observa é a crescente migração para grandes centros urbanos. Aos governantes e cidadãos cabe evitar o "risco de morte" anunciado no século passado pelo escocês.

Fonte: Estadão - 3 de Agosto de 2008

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